quarta-feira, 9 de abril de 2008
Somos Todos Perversos
Segundo uma concepção teológica da Natureza, herdeira do pensamento grego aristotélico, existem inclinações naturais das coisas.
O que é natural é bom e necessariamente agrada a Deus.
Nessa perspectiva São Tomás de Aquino qualificou certas práticas sexuais como contrárias à natureza, logo perversas na medida em que se desviavam da referência natural da procriação (humana e animal) – a união de dois órgãos sexuais diferentes para a preservação da espécie.
Qualquer prática sexual desviante da regra seria assim uma perversão da ordem natural, conceito que perdurou na nossa cultura até ao início do Séc. XX (e resiste ainda em muitas mentalidades), com reflexos quer na medicina quer no direito.
O positivismo novecentista preocupou-se fundamentalmente com a classificação ou etiquetagem das perversões sexuais, procurando aplicar o método científico à inventariação do pesado rol de desvios encontrados ao longo dos tempos, logrando, dessa forma, dotar médicos, legisladores e juízes de um precioso instrumento de trabalho destinado a diagnosticar e punir os prevaricadores.
Foi Freud quem, pela primeira vez, se insurgiu contra esta visão medieval da sexualidade, afirmando escandalosamente que as tendências perversas catalogadas pelos seus colegas como aberrações não só estão presentes nos espíritos de todos os seres humanos (inclusive daqueles que as catalogaram) como também nas crianças: "a criança é um perverso polimorfo", ousou afirmar.
E foi mais longe. Contrariando a visão que a biologia, a moral, a religião e o povo têm da natureza da sexualidade, defendeu que o objectivo da mesma não é a procriação. Antes escapa à ordem da natureza, actuando em serviço próprio.
Se a sexualidade não visa a procriação, antes a satisfação egoísta do indivíduo, somos todos perversos, no sentido em que nenhum ser humano vive a sua sexualidade na estrita perspectiva reprodutora.
Isto parece uma evidência, mas é uma afirmação verdadeiramente revolucionária!
Assim se compreende a dificuldade da Igreja em aceitar a contracepção. Se uma prática sexual não visa a reprodução mas o mero prazer do indivíduo, subverte o conceito natural e tomista da sexualidade, caindo consequentemente na sua perversão.
O uso de um preservativo (ou aliás de qualquer método contraceptivo) é uma perversão; o sexo praticado durante a gravidez é uma perversão; a masturbação é uma perversão; o sexo oral ou anal constitui perversão; e assim por diante até se chegar ao sexo procriador, o único que não viola o alegado sentido natural das coisas.
Por outro lado e apesar da lição freudiana de humildade, a sociedade em que vivemos ainda cai frequentemente no absurdo de reduzir o indivíduo à sua prática sexual.
Somos heterossexuais, homossexuais, bissexuais, transsexuais, sado-masoquistas, voyeurs, fetichistas e outras coisas mais, sempre de acordo com o catálogo positivista da sexualidade humana e das suas perversões.
No entanto, e segundo a Psicologia, todos nascemos bissexuais, na perspectiva em que é durante a infância, e por efeito da influência materna e paterna, que adquirimos as referências da masculinidade e da feminilidade, assimilando o quadro de valores e as condutas adequadas à sua vivência.
A assumpção de uma única sexualidade é assim uma das maiores feridas narcísicas que o ser humano tem de enfrentar: implica a rotura com toda uma parte da sua sexualidade infantil e a interiorização de um conjunto de valores externos, associados ao padrão sexual em que se deseja inserir, pela repressão dos restantes (os pertencentes ao outro sexo que naturalmente foram assimilados na infância pelo contacto com o respectivo progenitor).
Cada contexto sócio-familiar é único, logo cada sexualidade é também única.
Não há apenas uma forma de heterossexualidade, mas tantas quantos os indivíduos que a praticam. Precisamente porque cada um deles cresceu em contextos sócio-familiares diversos, assimilando de forma diferente o conjunto de valores fundamentais que, de acordo com o meio em que cresceu, identificam o seu sexo.
Da mesma maneira não há uma só homossexualidade ou bissexualidade, mas tantas quantos os indivíduos que as praticam (que na verdade só em sentido lato se inserirão numa das referidas categorias, já que na realidade praticam uma sexualidade única e individual, à semelhança dos heterossexuais).
Cada indivíduo cria a sua própria sexualidade, que é única e que poderá ser mais ou menos conforme às normas ditadas pela sociedade em que está inserido.
Assim, para a Psicologia, a sexualidade extravasa amplamente o meramente genital.
Por isso a forma como é vivida está na base de uma constante crise de valores, particularmente evidente quando é confrontada com mudanças sociais significativas.
Já vimos que a sexualidade humana está em constante mutação, fruto dos valores sociais de que emana. Por isso alterações significativas desses valores geram crises, porque confrontam o adulto com a necessidade de se adaptar à nova realidade, para a qual não está psicologicamente preparado (à semelhança do que acontece com a criança na passagem para a idade adulta).
Um factor aparentemente tão insignificante quanto a saída da mulher de casa para o trabalho (e do cuidado dos filhos) é suficientemente grave para questionar toda a aprendizagem da sexualidade masculina e feminina.
Qual é o papel do homem numa sociedade familiar bicéfala? Como gerir a nova posição da mulher, enquanto profissional de sucesso, face à sua masculinidade? Como compatibilizar o seu desempenho de pai, modelo da masculinidade dos filhos, com essas novas realidades?
São questões para as quais a esmagadora maioria dos homens não foi preparado, durante o processo de aprendizagem da sua masculinidade, para responder.
E o mesmo se dirá das mulheres. Como ser feminina e simultaneamente exercer funções de poder ou direcção? Como gerir familiarmente essa aparente inversão de papéis, quer no relacionamento com o marido quer no desempenho das tarefas maternais, modelo da feminilidade das filhas (e dos filhos)?
Também elas não aprenderam, na grande maioria das vezes, as respostas a essas perguntas durante a assimilação, na infância, dos contornos da sua feminilidade.
Toda a mudança é acompanhada de conflitos. O novo representa sempre uma ameaça que é necessário enfrentar.
A mudança do conteúdo da sexualidade, nos seus contornos externos e sociais, gera um novo processo de aprendizagem do que é ser homem e mulher, o qual nem sempre é bem resolvido, conduzindo às depressões, aos conflitos e aos divórcios e separações (que por sua vez obrigam a um novo repensar do papel de cada um dos cônjuges nesse ambiente pós-matrimonial ou bi-familiar, quando ao divórcio se segue um novo casamento).
Cada alteração ao status quo representa um atentado à sexualidade, que cada um resolve o melhor que pode (quando resolve…).
A rápida mudança de valores, a que temos assistido ao longo da nossa vida, provoca um constante conflito e uma busca incessante de sinais que nos digam o que espera a sociedade de nós, da nossa sexualidade, face aos novos valores que se perfilam.
Por muito que nos custe admitir, não existem apenas dois sexos, mas tantos quantos os indivíduos.
Cada indivíduo é um sexo, nem sempre compatível com o outro, apesar de, perante a suposta ordem natural, os sexos opostos deverem encaixar-se perfeitamente.
Mas nem sempre somos opostos. Por vezes somos mais semelhantes do que nos parece à primeira vista. Nem a oposição é, só por si, garantia de compatibilidade.
Há demasiados interesses contrapostos e demasiadas questões a responder quanto ao modo como podemos ou devemos viver a nossa sexualidade nesta sociedade em constante mudança, que temos de enfrentar.
Em cada dia há que aprender a ser homem e mulher.
E a nossa saúde, bem como os nossos casamentos, dependem directamente da forma como nos sairmos no exame!
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