quarta-feira, 9 de abril de 2008

O Sexo dos Anjos


Alfred Kimsey, o pai da sexologia, chocou os americanos com a publicação dos seus dois relatórios sobre a sexualidade humana: Sexual Behavior in the Human Male em 1948 e Sexual Behavior in the Human Female em 1953.
A América descobria que, segundo os estudos de Kimsey:
- 92% dos seus homens e 62% das suas mulheres se masturbava;
- 37% dos homens e 13% das mulheres já tinham tido uma relação homossexual que lhes tinha proporcionado um orgasmo;
- 46% dos homens reagia sexualmente a pessoas dos dois sexos no decorrer da sua vida adulta, sendo 11.6% declaradamente bissexuais;
- 50% dos homens casados e 26% das mulheres, já tinham tido experiências sexuais extra matrimoniais ao entrarem nos entas;
- 12% das mulheres e 22% dos homens respondiam eroticamente a situações sadomasoquistas.
E tais dados foram recolhidos nos anos 40 (presumo que muitas destas práticas tenham ganho novos adeptos entretanto…) através de entrevistas, ainda que garantindo o anonimato das respostas. Pelo que subsiste sempre a dúvida sobre a amplitude e sinceridade das respostas, permitindo supor que os resultados reais pudessem ser ainda mais discordantes com a moral pública vigente, do que os publicados!
Era obviamente demais para a América McCarthista! Durante as décadas seguintes cientistas conservadores e várias organizações religiosas dedicaram-se de forma sistemática a pôr em causa o trabalho do cientista da universidade de Indiana, com alegações que chegaram a acusá-lo de molestar centenas de crianças na elaboração dos seus revolucionários relatórios.
Uma das críticas mais pertinentes residia no rigor das amostragens utilizadas para as suas estatísticas.
Cientistas reputados como John Tukey chegaram a afirmar que uma selecção aleatória de três pessoas seria mais rigorosa do que trezentas escolhidas por Kinsey!
Em causa estava a escolha por este de alguns presidiários e de prostitutos e prostitutas para os seus inquéritos, para além da população universitária, que constituiu, ainda assim, o corpo mais significativo de entrevistados.
Outra critica, esta formulada por Abraham Maslow, prendia-se com o facto de a amostragem incidir apenas nos americanos que estavam dispostos a discutir com estranhos a sua vida sexual.
Na medida em que a maioria da população não estaria disposta a fazê-lo, os resultados seriam naturalmente afectados por essa circunstância, reflectindo apenas os hábitos sexuais de uma franja da população, precisamente a menos condicionada pela moral religiosa e social vigente.
Em resposta às criticas, e já depois da morte de Kimsey, o seu sucessor na direcção do Kinsey Institute for Sex Research, Paul Gebhard, dedicou-se a rever os trabalhos publicados, expurgando-os das entrevistas consideradas mais polémicas (tais como as de presidiários e homossexuais que se dedicavam à prostituição) levadas a cabo por Kimsey e pelos seus colaboradores.
Os resultados foram publicados em 1979 no livro The Kinsey Data: Marginal Tabulations of the 1938-1963 Interviews Conducted by the Institute for Sex Research, da autoria de Gebhard e de Alan B. Johnson, depois de década e meia de apuramento e alargamento da amostragem de entrevistas utilizada.
Para espanto de todos, incluindo o dos próprios autores, nenhuma das estatísticas de Kimsey foi verdadeiramente afectada pelo trabalho!
A conclusão de Kimsey de que 37% dos homens já tinham tido experiências homossexuais ao longo da sua vida adulta, viu-se reduzida para 36,4%. Os homossexuais exclusivos que Kimsey tinha computado em 10% da população masculina, foram reduzidos para 9,9% dos brancos universitários e aumentados para 12,7% entre os não universitários.
Umas atrás das outras, as estatísticas de Kimsey foram confirmadas, com diferenças desprezíveis, pelo trabalho de Gebhard e Johnson, levado a cabo décadas depois e deliberadamente excluindo das amostragens os grupos sociais mais polémicos onde, segundo os críticos, os hábitos sexuais inconvenientes estariam mais enraizados.
Assim, se as conclusões de Kinsey já eram chocantes para a América moralista, as de Gebhard e Johnson foram ainda mais: segundo estes, as pessoas de bem tinham, basicamente, os mesmos hábitos sexuais dos presidiários e dos que se dedicavam à prostituição!
As diferenças não estavam, portanto, naquilo que os grupos sociais faziam na intimidade da sua vida sexual, mas sim na imagem que dela davam socialmente.
Na peça Angels in América, de Tony Kushner, vencedora do prestigiado prémio Pulitzer e adaptada à televisão por Mike Nichols, uma sinistra personagem interpretada magistralmente por Al Pacino, um importante advogado nova-iorquino chamado Roy Cohn, íntimo colaborador da administração republicana e moralista de Reagan, promotor público durante a caça às bruxas McCarthista e responsável directo pela condenação à morte da activista comunista Ethel Rosenberg nos anos 50, expõe esclarecedoramente a mentalidade da América moralista quanto à sua sexualidade, num diálogo com o seu médico, quando é confrontado com a notícia de que sofre de SIDA:

- SIDA? – O teu problema Henry, é que te agarras a palavras, a rótulos, que acreditas que significam o que aparentam: SIDA, homossexual, gay, lésbica… - Achas que isso são palavras que te dizem com quem alguém dorme? Não, Henry. – Como todos os rótulos só te dizem uma coisa: onde o indivíduo se insere na cadeia alimentar. Não a sua ideologia ou orientação sexual, apenas algo muito mais simples: poder.
- Não interessa com quem eu faço sexo, mas sim quem me atende o telefone quando eu ligo, quem me deve favores. Para alguém que não perceba isto, eu sou um homossexual porque tenho sexo com homens, mas na verdade está errado. Um homossexual é alguém que está há 15 anos a tentar, sem sucesso, fazer passar uma lei anti-descriminação, na assembleia municipal. Um homossexual é alguém que não conhece ninguém e ninguém o conhece. Que tem zero poder. Isto parece-se comigo?
- Eu tenho sexo com homens, mas ao contrário de quase todos os homens de quem se pode dizer isso, eu levo o gajo com quem durmo à Casa Branca e o Presidente Reagan ri-se para ele e aperta-lhe a mão, porque o que eu sou é definido inteiramente por quem eu sou! – O Roy Cohn não é homossexual, mas sim um heterossexual que faz sexo com outros homens.
– SIDA é o que têm os homossexuais! – Eu tenho cancro no fígado!”

Em Portugal, como na América, a orientação sexual perante a sociedade nada tem a ver com as práticas de cada um, mas com aquilo que está disposto a admitir publicamente! Não interessa aquilo que faço, mas a forma como as outras pessoas me vêem, socialmente.
A assumpção pública da minha orientação sexual, das minhas parafilias, da identidade de quem partilha a minha cama, acarreta discriminação e o opróbrio dos meus semelhantes.
Pelo contrário, ao manter uma imagem moralmente impoluta, ou melhor, ao defender intransigentemente a moral dominante, mesmo que tal contrarie totalmente a minha prática sexual, está garantida a respeitabilidade perante a comunidade e melhor do que isso, o possível acesso aos núcleos de poder instituídos.
Por isso é incómodo falar de sexualidade. Acarreta o confronto com a hipocrisia social, individualmente assumida por cada um de nós, presos aos grilhões de muitos anos de prática sexual, nem sempre tão convencional quanto gostaríamos de assumir publicamente.
Falar de sexo é nomear o inominável. É reconhecer que metade dos nossos interlocutores podem já ter tido relações sexuais homossexuais ou andarem a enganar o marido ou a mulher. É admitir que a esmagadora maioria dos homens e mulheres sofre de algum tipo de parafilia! É aceitar, por muito que nos custe, que não somos tão diferentes assim daquelas pessoas que, socialmente, descriminamos pela sua conduta sexual excêntrica.
É no fundo falar do sexo dos anjos, que à nossa própria semelhança, são indefinidos, incapazes de assumir uma orientação sexual pura e resoluta!
Perante esta realidade, impunha-se uma de duas opções: ou assumirmos a sexualidade humana como ela é e aprendermos a vivê-la com verdade e respeito pela diferença; ou como McCarthy, organizarmos uma caça às bruxas, à escala nacional, não à procura de comunistas mas ao invés, que descubra quem são os dois ou três homossexuais existentes em cada turma das nossas escolas (correndo o risco de descobrirmos que algum deles é um dos nossos próprios filhos), quais são os mais de cem deputados adúlteros do parlamento ou os vinte exclusivamente gays, os dois mil professores homossexuais que leccionam nas nossas escolas ou os mais de três mil sadomasoquistas!
E já agora podemos alargar a pesquisa aos membros do Governo, a toda a administração pública, às empresas privadas, às reuniões de condomínio!
Segundo as estatísticas de Kimsey, devemos ter quase um milhão de homossexuais exclusivos e quatro milhões de homossexuais ocasionais para caçar em Portugal. Os sado-masoquistas devem contar-se em perto de dois milhões. Os adúlteros em mais de três milhões e os masturbadores em mais de oito milhões, entre homens e mulheres!
Mas a escolha é difícil, pelo que o mais provável é continuarmos a fazer como a avestruz: a meter a cabeça na areia.
E a discutir o sexo dos anjos…

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